Em questões da família e das escrituras, os cristãos estão um pouco em sarilhos. Nem sempre é claro como as nossas convicções acerca dos “valores da família” se relacionam com o que a Bíblia ensina, especialmente os Evangelhos.

Jesus, por exemplo, não atribuiu o grande significado espiritual e sentimental à vida familiar que muitos cristãos fazem hoje em dia. Como conciliar então a expectativa de que todos os bons cristãos devem casar com o seu exemplo de celibato para toda a vida? Ou o nosso campeonato de família com o aviso de Jesus de que segui-lo irá colocar o irmão contra o irmão e os pais contra o filho? O apoio aos valores familiares coloca questões particularmente interessantes para os igualitários bíblicos, uma vez que muitos dos nossos companheiros crentes na Bíblia defendem que estes valores devem incluir um modelo hierárquico de casamento.

A fim de compreender a atitude de Jesus para com a família, temos de compreender que as práticas familiares no primeiro século não se baseavam em emoções como as de hoje, mas sim em interesses materiais e económicos. No meu livro, A Redenção do Amor,1 mostro que os valores familiares prevalecentes na época de Jesus foram as consequências económicas da Queda. Estas práticas familiares, agora conhecidas como patriarcalismo, foram corrompidas pela decisão humana de ter o nosso próprio caminho e viver fora da abundância de Deus.

Uso-me ao historiador do Novo Testamento S. Scott Bartchy ao argumentar que em vez de apoiar o patriarcado, Jesus e outros escritores do Novo Testamento (especialmente Paulo) tinham a intenção de o atirar para o ar. Assim, os ensinamentos de Jesus, que hoje parecem anti-família, reflectem a sua intenção de dissolver os motivos materialistas para a família e substituí-los por relações baseadas em fazer a vontade de Deus.2

Jesus’ Ideal para o Casamento

Um dos exemplos mais importantes de como Jesus reorientou os valores familiares é encontrado em Mateus 19:1-12. Nesta passagem, os fariseus tentam enredar Jesus numa disputa sobre os fundamentos do divórcio. Contudo, ele recusou-se a ser atraído e respondeu que eles deveriam estar mais preocupados com os fundamentos do casamento em vez de discutir sobre o divórcio.

Referring his questioners back to God’s intent in creation, Jesus citou Génesis 2,24, “Por esta razão, um homem deixará o seu pai e a sua mãe e será unido à sua esposa, e os dois tornar-se-ão uma só carne”. Para garantir que não perdessem o ponto, ele acrescentou: “Assim já não são dois, mas um” (vv. 5, 6a).

Este ideal de marido e mulher se tornarem “um”, contudo, surpreendeu até os próprios discípulos de Jesus, que responderam: “Se esta é a situação entre marido e mulher, é melhor não casar” (v. 10). No seu contexto, os homens casaram para satisfazer as suas próprias necessidades materiais de filhos, sexo, e gestão doméstica. Eles não esperavam fazer os sacrifícios pessoais que o facto de se tornarem “uma só carne” implicava no modelo de criação do casamento.

Jesus concordou que nem todos são capazes de tal união, mas uma vez que este era o objectivo da criação de Deus da humanidade como seres sexuais, “aquele que é capaz de a aceitar deve aceitá-la” (vv. 11-12). Por outras palavras, as pessoas que decidem casar devem basear a sua união nas intenções de Deus, em vez de necessidades materialistas.

Singleness

Nesta passagem Jesus desafiou outro antigo valor familiar – a expectativa de que toda a pessoa respeitável deveria casar. Ele notou várias razões pelas quais as pessoas poderiam optar por não casar, incluindo a decisão de se dedicarem inteiramente ao reino dos céus (v. 12). Entre este ensino e o seu próprio exemplo de celibato, Jesus deixou claro que era aceitável que as pessoas piedosas permanecessem solteiras.

Esta era uma reivindicação radical, uma vez que a singeleza raramente tinha sido uma opção antes. Historicamente, a maioria dos casamentos eram organizados por famílias para promover os seus próprios interesses, muitas vezes com pouca consideração pelas preferências dos noivos. Dado o quão longe a relação entre marido e mulher tinha caído da intenção de Deus, permitir que as pessoas permanecessem em pecado – o contentamento era uma grande bênção. Isto era particularmente verdade para as mulheres, que eram valorizadas principalmente pela sua capacidade de contrair um bom casamento e ter filhos.

p>Ao permitir que os crentes permanecessem solteiros e ao desafiar as pessoas casadas a renunciarem à forma egocêntrica como viviam juntos, Jesus lembrou-nos que Deus criou a sexualidade humana como uma bênção:

p> Então Deus criou os seres humanos à sua própria imagem, à imagem de Deus criou-os; homem e mulher criou-os. Deus abençoou-os e disse-lhes: “Sejam fecundos e aumentem em número…”. (Gen. 1:27-28; a minha ênfase)

O imperativo no versículo 28 não é um comando. Pelo contrário, o casamento, os filhos, e a própria sexualidade são bênçãos, dádivas de Deus aos seres humanos. Como tal, os seres humanos podem ou não participar delas. Enquanto os ensinamentos de Jesus afirmam fortemente a justeza do casamento como um dom de Deus, ao mesmo tempo não há apoio bíblico para a insistência de que os indivíduos se casem ou tenham filhos.

Ver o casamento e a família como dons piedosos ajuda-nos a apreciar a extensão do sacrifício de Jesus pelo nosso bem, renunciando ao conforto do lar e da família a fim de servir o reino dos céus. Que Jesus estava bem ciente do seu sacrifício é visível no seu lamento: “As raposas têm buracos e as aves têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem lugar para pôr a cabeça” (Mat 8:20).

Divórcio

A resposta de Jesus à pergunta dos fariseus sobre o divórcio também alargou significativamente as suposições da sua cultura sobre o casamento. Jesus acreditava que o casamento era a união de dois em um, e que “o que Deus tinha unido”, os homens não deviam separar (v. 6; Marcos 10,9). Ele reconheceu que a única desculpa válida para a rejeição de um homem da sua esposa era a infidelidade da sua parte, mas depois acrescentou uma reviravolta surpreendente.

As sociedades antigas consideravam o adultério como um crime contra os homens. A menos que o parceiro feminino fosse casado, as relações de um homem fora do casamento não eram consideradas adúlteras. Embora a moralidade judaica não permitisse a licença sexual concedida aos homens no mundo pagão, eles ainda consideravam o adultério como um pecado cometido contra o marido da adúltera, mas não contra a esposa da adúltera.

A definição de Jesus de casamento como uma relação de “uma só carne” reformula implicitamente o adultério não como um crime de propriedade contra os homens, mas como um despedaçar da união essencial criada por Deus. No seu modelo, o adultério é uma preocupação não porque viola o direito do homem à sexualidade da sua esposa, mas sim porque introduz um terceiro na relação “dois tornam-se um”.

Esta visão do casamento fez da infidelidade do marido um pecado contra a sua esposa, e o facto de terem obtido um processo de divórcio não mudou as coisas: “Quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério contra ela….” (v. 9; Marcos 10:11).3 Esta rejeição do “duplo padrão” constituiu um passo importante no reconhecimento das mulheres como parceiros de pleno direito no casamento e na afirmação da sexualidade como sendo central para a união conjugal e não como um simples recurso físico.

A Importância do Parentesco Espiritual sobre o Físico

o ministério de Jesus desafiou consistentemente as limitações impostas às mulheres. A sua resposta a uma mulher que “levantou a sua voz e disse: ‘Abençoado seja o ventre que te suportou e os seios que te amamentaram'”. (Lucas 11:27 NRSV) é um bom exemplo.

Num contexto em que as mulheres eram julgadas pelas realizações dos seus filhos, esta mulher pretendia fazer um elogio a Jesus: “A tua mãe foi abençoada por ter um filho como tu!” Mas a mulher enquadrou a bênção da sua mãe em termos de biologia – ela não foi muito mais do que um ventre e seios afortunados. Jesus, contudo, respondeu: “Abençoados são antes os que ouvem a palavra de Deus e a obedecem”! (v. 28 NRSV).

p>Embora a mulher na multidão não a pudesse ter conhecido, a declaração de Jesus aplicou-se especialmente no caso da sua própria mãe, uma jovem que foi avisada por um anjo que daria à luz um filho pelo Espírito Santo. Maria sabia que, segundo a lei do Antigo Testamento, ela poderia ser apedrejada até à morte se fosse encontrada grávida por alguém que não o seu noivo, mas ela aceitou o risco com fé. Jesus disse que o que era verdadeiramente admirável na sua mãe, ou em qualquer pessoa, era essa obediência e fé.p>O que era importante em cada mulher ou homem não era a sua capacidade de gerar ou ser pai de filhos, mas sim que eles ouvissem a palavra de Deus, e a obedecessem. Esta redefinição da bem-aventurança abriu a porta a laços que se estendem para além do parentesco físico. Apenas uma mulher poderia ser a mãe de Jesus na carne, mas obedecendo à palavra de Deus, um número infinito de pessoas, masculinas ou femininas, poderia entrar numa relação familiar com ele.4 Jesus até avisou que fazer a vontade de Deus resultaria na rejeição dos crentes pelas suas famílias descrentes:

Brother trairá o irmão até à morte, e um pai o seu filho. Os filhos rebelar-se-ão contra os seus pais, e mandá-los-ão morrer. Todos vos odiarão por minha causa, mas aqueles que se mantiverem firmes até ao fim serão salvos. (Marcos 13:12-13 TNIV)

Esta afirmação pode parecer-nos extrema, mas foi ainda mais chocante no contexto de Jesus. O patriarcado antigo atribuía grande valor ao prestígio da família, que só podia ser aumentado à custa de outras famílias. Devido a esta intensa competição, só os membros da família podiam ser confiados.5 Elizabeth Johnson escreve que, “A noção de que os membros da família, em particular os irmãos, devem lidar traiçoeiramente uns com os outros é uma palavra de ordem na antiguidade para a própria profundidade da desonra doméstica “6

Jesus afirma que “Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama um filho ou uma filha mais do que a mim não é digno de mim” (Mat. 10:37) era igualmente desafiante. Seguir Jesus exigiu a renúncia dos laços familiares com base em preocupações egocêntricas sobre prestígio, poder e realizações materiais, a fim de abraçar um novo grupo de parentesco espiritual baseado em fazer a vontade de Deus. Ao fazer do Reino dos Céus a fonte das suas relações primárias, os crentes são redimidos do materialismo da Queda.

Responsabilidade Familiar

Jesus não pretendia que os seus discípulos abandonassem totalmente as suas famílias biológicas, mas sim que as desafiassem a abandonar as estruturas familiares que se auto-servem – especialmente quando estas velhas lealdades interferiam com o seu dever superior de servir a Deus.

O Novo Testamento inclui muitos exemplos de discípulos que continuaram a honrar e a desfrutar dos laços familiares: Uma das primeiras pessoas que Jesus curou foi a sogra de Pedro (Marcos 1:30), Paulo ensinou que os apóstolos tinham direito a que os seus cônjuges viajassem com eles (1 Coríntios. 9:5), Filipe, o evangelista, ministrou com as suas filhas proféticas (Act 21:9), e Áquila e Priscila foram uma equipa ministerial de marido e mulher (Act 18).

Embora renunciemos ao nosso desejo de nos agarrarmos ao interesse próprio, conciliar o dever para com Deus com o amor à família não é difícil. Fazemo-lo fazendo da nossa família o primeiro local para fazer o trabalho de Deus. De facto, quando lidos à luz dos ensinamentos de Jesus e das práticas familiares do primeiro século, os escritos de Paulo em Efésios 5 e 6 emergem não como um endosso do patriarcado, mas como directrizes para estruturar o casamento cristão e a família sem ele.

Por exemplo, Paulo escreve que as crianças devem obedecer aos seus pais, uma noção consistente com o patriarcado. Os pais, contudo, não devem usar essa obediência para os seus próprios fins, como no passado. Pelo contrário, agora usam-na para servir os seus filhos, educando-os na educação e admoestação do Senhor (Ef. 6:3, 4).

Jesus disse que veio para servir, não para ser servido (Marcos 10:45; Mat. 20:28). Assim, quando Paulo descreve o marido como “cabeça” da sua esposa como Cristo é cabeça da igreja, ele desenha não numa metáfora de autoridade, mas na metáfora da cabeça como a fonte da unidade. O marido faz isto não liderando a sua esposa, e certamente não governando sobre ela, mas sim nutrindo-a e servindo-a de tal forma que crescem juntos, cabeça e corpo, numa só carne.

Jesus e Valores Familiares Hoje

No contexto de Jesus, as pessoas casadas para ter filhos para os servir e cuidar deles. No nosso contexto, as pessoas casam e/ou têm filhos, a fim de terem alguém para amar e nos amar em troca. Isto representa uma mudança importante e positiva nos motivos; no entanto, o impulso caído de usar outras pessoas para satisfazer necessidades egocêntricas permanece.

O imperativo de Génesis 1:28 (“Sê fecundo e aumenta em número”) é uma bênção, não um mandamento. Não acredito que a Bíblia ensine uma obrigação cristã de casar ou de ter filhos. Mas se começarmos as nossas próprias famílias, Jesus ensinou que temos responsabilidades profundas para com o nosso cônjuge e filhos. No casamento, devemos lutar por uma relação de vida, de uma só carne. Como pais, temos filhos não para satisfazer as nossas próprias necessidades de amor, mas para criar uma geração piedosa que ama o Senhor.

p>Os valores familiares que Jesus ensinou não são de facto “expeditos” ou lucrativos pelos padrões mundanos. Estes são valores familiares do reino dos céus, e são verdadeiramente os únicos valores que vale a pena viver.

Notas

  1. A Redenção do Amor: Resgatar o Casamento e a Sexualidade da Economia de um Mundo Caído (Grand Rapids, Mich.: Brazos, Abril de 2006).
  2. “Undermining Ancient Patriarchy”: The Apostle Paul’s Vision of a Society of Siblings”, Boletim Teológico Bíblico 29,2 (1999): 68-78.
  3. >li>Por esta passagem, Jesus sustenta a advertência de que o divórcio é admissível para a parte inocente. Nos escritos de Paulo vemos que embora os primeiros cristãos lutassem com o novo casamento, a separação no interesse da “paz” era aceitável (1 Cor. 7). Um escrito de divórcio não se refere à separação conjugal em si, mas a um documento que renuncia à pretensão do marido à sua esposa, libertando-a para voltar a casar.li>Gilbert Bilezikian, Beyond Sex Roles: O que diz a Bíblia sobre o lugar da mulher na Igreja e na Família (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1985), 94.li>Bartchy, p.68.li>Elizabeth Johnson, “Quem é a Minha Mãe? Valores familiares no Evangelho de Marcos”, em Blessed One: Protestant Perspectives on Mary, ed. Beverly Roberts Gaventa e Cynthia L Rigley (WJK 2002), 38.

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